03/03/2017

A fé precisa se comprometer com a vida.

É imprescindível desenvolver um caminho educativo que acorde a consciência dos povos amazônicos para a urgência de preservar a terra que é sua por direito.

Por Sandra Regina de Sousa*

“Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente” (Rm 8,22).  Sem sombra de dúvidas, o Planeta Terra com sua natureza extraordinária, tem sido alvo de um capitalismo desumano, que o suga gota a gota, todos os dias, deslealmente, visando somente o lucro exacerbado, produzindo uma cultura do desperdício em diversos níveis da existência. Alimentos, água, papel e outras tantas coisas sendo jogadas fora todos os dias, causando uma violência absurda contra a natureza e evidenciando que a consciência humana anda adormecida pelo consumismo ilusório e desenfreado. De um lado, o rico e, de outro, o pobre retratam duas realidades opostas a dividir seres humanos. O rico, imerso na riqueza, retrata em sua conduta uma ânsia desmedida de esbanjar, consumir, gastar sem limites. Não importa o preço a pagar. Banqueteia-se diariamente, destituído de preocupação ética e consciência crítica. O pobre, o burro de carga desse rico, anseia por políticas públicas, oportunidades, portas abertas, justiça social. Ele representa todos os que são jogados no sistema opressor do mundo, fora do convívio, excluídos da participação justa nas esferas comuns. Esses retratam a desigualdade que se instala assustadoramente no mundo.

A Amazônia não escapa dessa cruel realidade. Pelo contrário, todos os dias bebe do veneno mortal da exploração sem limites, que só quer expropriar tudo que encontra pela frente, e que pode se transformar em dinheiro. Corre perigos dos mais diversos nas mãos dos que destroem sua biodiversidade composta de ricas florestas, rios majestosos, espécies tão raras, povos originários, sem um mínimo de interesse em preservar, conservar ou manejar. Desequilíbrio e desigualdade são, hoje, o que caracteriza o modo de vida de tantos seres que ali nascem e crescem todos os dias, nos mais distantes lugares. 

Como missionária nessas terras amazônicas, aprendi a olhar essa realidade desde fora, com atenção, cuidado e muito respeito, pois ela é composta, primeiramente, de pessoas, que em seu contexto social, cultural, econômico, religioso, sofrem cotidianamente as duras penas imposta pelo capitalismo. A invasão dessas terras se deu maneira tão desumana, que muitas vezes impregna a cultura de um povo dos mesmos sentimentos daqueles que vêm de fora explorar cruelmente essa natureza sagrada. É claro que há muitas exceções, dependendo da região e das pessoas que nela habitam. A extensão territorial da Amazônia é imensa e seus povos tão diversos quanto suas plantas e bichos. 

Vi de perto a dolorosa destruição, mas também a luta pela preservação da terra. Nas suas diferentes regiões, o povo tem um olhar distinto para a natureza. Muitas comunidades do Estado do Amazonas plantam, cuidam e preservam a terra. Lutam por ela. Morrem se for preciso. São povos guerreiros que sabem que a Terra não é propriedade de uns poucos, mas é Mãe de todos. Outras tantas comunidades, formadas por pessoas que se deslocaram do sul e sudeste com o intuito de ganhar dinheiro, muitas vezes, de maneira ilegal, desmatam sem a menor preocupação com o manejo consciente que protege as espécies e preserva. Foram tomadas pelo ideal do capitalismo, destroem em nome de um progresso que nunca chega, de uma melhor qualidade de vida insuficiente. Outras, ainda, em sua simplicidade e pobreza, caem aos pés dos poderosos por falta de opções de trabalho. São exploradas e jogadas dentro de esquemas muito bem montados do agronegócio, do garimpo, das madeireiras, das hidrelétricas, da mineração, da monocultura, da agropecuária. É uma luta desigual em que sempre vence o mais forte, o que tem o dinheiro e o poder. Ao povo faltam políticas públicas, atenção dos seus governantes, que por uma total falta de responsabilidade e compromisso com esses pobres povos na Amazônia, negligencia saúde, educação, saneamento básico, deixando-os à margem da sociedade, esquecidos e humilhados. Negam a possibilidade de investimentos que sejam direcionados ao aproveitamento de suas riquezas naturais, visando a sustentabilidade desse povo, para mantê-los cativos em seus grandiosos empreendimentos.

Assim, muitos povos ribeirinhos, indígenas que perderam sua cultura, língua, costumes, ou moradores das margens das estradas, mergulham no esquema torto do extermínio, para que seus filhos não morram de fome e não tenham que ir para a capital viver precariamente. Em muitas dessas comunidades há uma crescente falta de cuidado com o lixo, com os rios, com os bichos, que diariamente são traficados para as mais diversas regiões. Peixes como o Pirarucu, que são pegos ainda filhotes e vendidos inescrupulosamente, rendem muito dinheiro aos atravessadores e quase nada aos pescadores. A falta de consciência e a ilegalidade têm tomado espaço cada vez mais na Amazônia.   

Sentir-se intimamente ligado a todas as coisas criadas está fora do horizonte de muitas pessoas que habitam essas terras. A alienação e a falta de conhecimento provocam uma apatia, uma desvalorização de si mesmos diante do dragão que os ameaçam cada dia, impedindo-os de despertar a consciência de que estão sendo esmagados pela ganância de uns tantos. E como bem disse o papa Francisco, em sua Carta Encíclica “Laudato Si”: “Muitos esforços na busca de soluções concretas para a crise ambiental acabam com frequência, frustrados não só pela recusa dos poderosos, mas também pelo desinteresse dos outros”[1].

Meu olhar “estrangeiro” vê como é imprescindível desenvolver um caminho educativo que acorde a consciência desses povos, para a urgência de preservar essa terra, que é deles por direito. Que percebam o claro-escuro da história, onde ouve-se o gemido de cada espécie extinta, de cada árvore tombada, de cada rio que seca. O momento é crítico, pois a continuação da vida depende da Mãe-Terra com seus seios fartos, porém tudo que acontece a ela, acontece aos seus filhos. É preciso abrir espaço para a reflexão, para a formação de lideranças que lutem em busca de seus direitos e queiram, de verdade, transformarem essa realidade.

A fé precisa se comprometer com a vida. Ela não pode ser reduzida a uma lista de preceitos, em que basta batizar, crismar, casar, fazer primeira comunhão e tudo está resolvido diante de Deus. O resto é coisa para a política e a Igreja não deve se meter. Infelizmente, ainda existe esse olhar em muitas comunidades por essas terras, resultado de uma evangelização voltada inteiramente para a realização dos sacramentos. Tal postura não colabora com a libertação dos povos na Amazônia. Faz-se muito necessário hoje, que a Igreja encare de frente sua responsabilidade de provocar uma reflexão profunda junto a esses pobres oprimidos, que lhes dê abertura da consciência para enfrentar essa dura realidade como guerreiros que lutam pelo bem mais precioso que existe: a TERRA.
[1] Carta Encíclica do Sumo Pontífice Francisco Laudato Si’ Louvado sejas, sobre o cuidado da casa comum. Documentos do Magistério. Paulus; Loyola, 2015, p.16. X

*Sandra Regina de Sousa é leiga missionária. É mestra em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, pela dimensão da espiritualidade. É cantora, compositora e formadora de catequistas

Fonte: Site Dom Total

Por: PASCOM Diocesana